Page 60 - Centenário Sophia AEAV
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E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes, Joana pôs-se a imaginar o frio, a
escuridão e a pobreza. Pôs-se a imaginar a Noite de Natal naquela casa que não era bem uma
casa, mas um curral de animais.
«Que frio lá deve estar!», pensava ela.
«Que escuro lá deve estar!», pensava ela.
«Que triste lá deve estar!», pensava.
E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma luz onde Manuel dormia em cima
das palhas, aquecido só pelo bafo de uma vaca e de um burro.
— Amanhã vou-lhe dar os meus presentes — disse ela. Depois suspirou e pensou:
«Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de Natal.»
Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros espreitou a rua. Ninguém passava. O
Manuel estava a dormir. Só viria na manhã seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra
escura: era o pinhal.
Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as doze pancadas da meia-noite.
«Hoje», pensou Joana, «tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite. Para que ele
tenha presentes na Noite de Natal.»
Foi ao armário tirou um casaco e vestiu-o. Depois pegou na bola, na caixa de tintas e
nos livros. Apetecia-lhe levar também a boneca, mas ele era um rapaz e com certeza não
gostava de bonecas.
Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um por um. Mas na cozinha a
Gertrudes fazia muito barulho a arrumar as panelas e não a ouviu.
(…)
A estrela
Quando se viu sozinha no meio da rua teve vontade de voltar para trás. As árvores
pareciam enormes e os seus ramos sem folhas enchiam o céu de desenhos iguais a pássaros
fantásticos. E a rua parecia viva. Estava tudo deserto. Àquela hora não passava ninguém.
Estava toda a gente na Missa do Galo. As casas, dentro dos seus jardins, tinham as portas e
as janelas fechadas. Não se viam pessoas, só se viam coisas. Mas Joana tinha a impressão de
que as coisas a olhavam e a ouviam como pessoas.
«Tenho medo», pensou ela.
Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada.
(…)
O silêncio era tão forte que parecia cantar. Muito ao longe via-se a massa escura dos
pinhais.
«Será possível que eu chegue até lá?», pensou Joana.
Mas continuou a caminhar.